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terça-feira, 12 de junho de 2012

Sentir ≠ Pensar (dor de pensar)

Pessoa privilegiava o mundo inteligível, o pensamento, a análise das coisas como elas são, opondo o 'pensar' ao 'sentir'. 
Para o poeta, era essencial o 'pensar', no entanto, ele sabia que o pensamento levava à consciência da realidade da vida. Consequentemente, provocaria dor, angústia e solidão, pois Fernando Pessoa tem consciência que o 'pensar' não permite alcançar a felicidade.


Como tal, é no poema "Ela canta, pobre ceifeira" que a dor de pensar é expressa intensamente, e com maior destaque nos seguintes versos: "Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!".


Quer com isto o poeta dizer que mais feliz é aquele que não pensa, que vive alheio à realidade da vida, sem se interrogar acerca de nada, do que aquele que pensa e analisa os detalhes da vida, consciente da realidade.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Fernando Pessoa, Ortónimo: Isto

ISTO

'Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
Tudo o que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!'

Fernando Pessoa


Na primeira estrofe, o poeta apresenta a sua tese: não usa o coração para escrever, sente com a imaginação e não mente.

Na segunda estrofe, Pessoa desenvolve e fundamenta, filosoficamente, a necessidade de usar a imaginação para escrever: o poeta pretende ultrapassar "o que lhe falha ou finda" e "contemplar outra coisa", que são como "um terraço/sobre outra coisa", sendo "essa coisa "é que é linda". "Essa coisa" dão os dados da imaginação, a transformação artística operada pela inteligência / imaginação. A comparação "como que um terraço" simboliza as aparências que escondem a realidade mais bela.

Na terceira estrofe, o poeta justifica o facto de se querer libertar do imediato e das sensações, em que ao escrever se distancia delas, colocando-se ao nível do fingimento, do pensamento e livre da confusão dos sentidos, acreditando sincero na esfera daquilo que não é o que parece. No último verso, termina ironicamente, remetendo o sentimento e as emoções para o leitor, para que ele sinta a "dor lida".


Nota: 
  • o poema é constituído por três quintilhas;
  • linguagem simples, poesia com ritmo e musicalidade;
  • uso da metáfora "Sinto com a imaginação";
  • uso da ironia "Sentir? Sinta quem lê!".



O fingimento poético de Fernando Pessoa

A poesia de Fernando Pessoa é fruto da 'despersonalização' (através da "Autopsicografia" e "Isto") que transmite uma fragilidade estrutural, mas esconde uma enorme densidade de conceitos.
A expressão de sentimentos e sensações "pensadas" provêm de uma construção mental, - a imaginação - que leva à fuga ao sentimentalismo.


Logo, o poeta é um fingidor e um racionalizador de sentimentos




domingo, 3 de junho de 2012

Fernando Pessoa, Ortónimo: Autopsicografia

AUTOPSICOGRAFIA


'O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.


E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.'


Fernando Pessoa






Para Pessoa, o processo de criação poética implica uma atitude de fingimento por parte do criador, intelectualizando os sentimentos. 'Fingir' é modelar através da imaginação, simular uma emoção ou sentimento. Logo, o primeiro verso do poema funciona como uma tese, onde o processo de transformação da 'dor sentida' em 'dor fingida' materializa-se através da linguagem poética.

A 'dor sentida', ou seja, as verdadeiras emoções do poeta, não é aquilo que ele transmite: as dores sentidas ficam guardadas para ele mas, no entanto, são um suporte para a construção de uma nova dor, que será aquela que ele vai exprimir e transmitir aos leitores (a 'dor fingida').
Mas o leitor ao ler o poema vai sentir ainda outra dor diferente destas: a 'dor lida', a dor que eles vão construir quando lêem o poema, que também é uma dor intelectualizada.
Se ser poeta é ser fingidor, é porque o ato criativo é um ato pensado, é uma representação, que só se completa quando a obra chega ao leitor.

A última estrofe remete para a dicotomia 'sentir-pensar', uma vez que põe em confronto a razão e o coração. O coração é considerado como um "comboio de corda", um brinquedo sem autonomia que circula unicamente nas "calhas de roda", sem poder mudar de rumo.
O coração representa a emoção, é o que está relacionado com o sentir; já a razão relaciona-se com o pensamento. O coração é aquilo que apenas serve para "entreter a razão".

Conclui-se, então, que a experiência emocional é o ponto de partida para a criação poética, mas só quando filtrada pela razão.








Fernando Pessoa, Ortónimo

Principais características temáticas:



  • Identidade perdida;
  • Consciência do absurdo da existência;
  • Tensão entre Sinceridade/Fingimento, Consciência/Inocência;
  • Anti-sensacionismo: inteletualização da emoção;
  • Estados negativos: solidão, cepticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero;
  • Inquietação metafísica;
  • Neoplatonismo;
  • Refúgio no sonho e no ocultismo;
  • Criação de heterónimos ("Sê plural como o universo!");
  • Intuição de um destino coletivo e épico para o seu país (Mensagem);
  • Tentativa da superação da dor e do presente, através da evocação da infância onde a felicidade ficou perdida e onde não existia o "sentir";
  • Tem uma visão negativa e pessimista da existência - o futuro aumentará a sua angústia, pois é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade.



Temáticas na sua poesia:

  • O sonho - interseção entre sonho e realidade (ex.: Chuva oblíqua);
  • Angústia existencial e a nostalgia da infância (ex.: Pobre velha música);
  • Distância entre o idealizado e o realizado (ex.: Tudo o que faço ou medito);
  • A intelectualização das emoções e dos sentimentos para a criação da arte (ex.: O que julguei que senti).




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