'O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.'
Fernando Pessoa
Para Pessoa, o processo de criação poética implica uma atitude de fingimento por parte do criador, intelectualizando os sentimentos. 'Fingir' é modelar através da imaginação, simular uma emoção ou sentimento. Logo, o primeiro verso do poema funciona como uma tese, onde o processo de transformação da 'dor sentida' em 'dor fingida' materializa-se através da linguagem poética.
A 'dor sentida', ou seja, as verdadeiras emoções do poeta, não é aquilo que ele transmite: as dores sentidas ficam guardadas para ele mas, no entanto, são um suporte para a construção de uma nova dor, que será aquela que ele vai exprimir e transmitir aos leitores (a 'dor fingida').
Mas o leitor ao ler o poema vai sentir ainda outra dor diferente destas: a 'dor lida', a dor que eles vão construir quando lêem o poema, que também é uma dor intelectualizada.
Se ser poeta é ser fingidor, é porque o ato criativo é um ato pensado, é uma representação, que só se completa quando a obra chega ao leitor.
A última estrofe remete para a dicotomia 'sentir-pensar', uma vez que põe em confronto a razão e o coração. O coração é considerado como um "comboio de corda", um brinquedo sem autonomia que circula unicamente nas "calhas de roda", sem poder mudar de rumo.
O coração representa a emoção, é o que está relacionado com o sentir; já a razão relaciona-se com o pensamento. O coração é aquilo que apenas serve para "entreter a razão".
Conclui-se, então, que a experiência emocional é o ponto de partida para a criação poética, mas só quando filtrada pela razão.
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